Confraria do Jornalismo

sexta-feira, abril 06, 2007

O pedaço que falta

O Crocodilo, de Nanni Moretti

Em pouco mais de 60 anos de república, a Itália teve 60 formações de governo diferentes. Ou seja, praticamente uma por ano. Uma das figuras mais folclóricas e controversas a ocupar o posto de primeiro-ministro foi o magnata Silvio Berlusconi, que ficou no poder pelo período mais longo da história republicana do país, ao ocupar o cargo de “Presidente del Consiglio dei Ministri” entre 2001 e 2005, num total de 3 anos, 10 meses e 12 dias!

É sobre essa figura que se constrói a história de O Crocodilo, filme do diretor italiano Nanni Moretti. O nome é igual em italiano, “Il Caimano”, que é também o apelido dado ao ex-primeiro-ministro em um artigo do jurista Franco Cordero no jornal “La Repubblica”.

Acima das questões políticas, o espectador encontra um filme sobre como fazer um filme. É o cinema falando do cinema. Começa pela definição do roteiro, a procura por financiamento, atores, produção de cenários e a finalização do processo, cortando boa parte do planejado pela falta de recursos.

Um produtor de cinema, falido nos negócios e no amor, tentar mudar a situação fazendo um novo filme. Mas ele perde sua primeira idéia para uma rede maior, e resta apenas o roteiro que lhe foi entregue por uma jovem roteirista. Sem ler o roteiro, dá continuidade ao projeto e não percebe que o texto que tem em mãos é sobre Berlusconi.

Ao longo da narrativa, Moretti constantemente provoca seus conterrâneos a repensarem o país. Seja pela figura do investidor polonês que sempre se refere ao país no diminutivo (“Vocês são muito engraçados. Vivem nessa Italiazinha e se dão por satisfeitos assim”) ou por meio de frases como “O mundo inteiro ri de nós” e “Lá fora ninguém consegue entender como ele pôde nos paralisar por tanto tempo”.

O filme é marcado por buscas. O produtor está atrás da recuperação de seu casamento, o que acredita ser possível com a realização do filme, mesmo objetivo da jovem roteirista, que também almeja escancarar um figurão político do país, pois não admite que isso ainda não tenha sido feito. A esposa do produtor, por sua vez, deixou de ser atriz para tentar a carreira no canto lírico.

Mas a procura mais significativa é a do filho do produtor, que não consegue encontrar a pecinha do jogo de montar para concluir sua nave espacial. Por mais simples que pareça, simboliza as buscas das demais personagens e é o próprio retrato da Itália. Após um período de recuperação no pós-guerra, o país tinha tudo para entrar num caminho de desenvolvimento, mas uma dessas peças se perdeu e até hoje os italianos a procuram, sem mesmo saber qual é.

Mas quem é Berlusconi?

As melhores respostas achei no site da BBC. Homem mais rico da Itália, e um dos 14 do mundo, é proprietário de um império que envolve comunicações, publicidade, seguros, alimentos e construção, além de ser o proprietário do Milan, time de futebol onde hoje jogam Dida, Cafu, Kaká, Ricardo Oliveira e Ronaldo.

Outra característica de destaque é a capacidade de fugir de acusações de corrupção. Mas esta é conseqüência de um comportamento que um italiano me explicou e fica bem explícito no filme. Lá não há um debate racional sobre Berlusconi. Ou você ama, ou você odeia. Mais ou menos o que acontece aqui com Paulo Maluf, Antonio Carlos Magalhães, Fernando Collor, Anthony Garotinho...

E se alguém acha que o Lula ou Bush são campeões nas gafes, Berlusconi também entra no páreo, e vem com tudo.

1) No discurso na presidência do Parlamento Europeu, em 2003, ao falar com o representante alemão Martin Schulz:
Sei que na Itália estão produzindo um filme sobre os campos de concentração nazistas. Eu poderia lhe indicar ao papel de Kapo (guarda escolhido entre os prisioneiros). Seria perfeito
Diante da retaliação do representante espanhol, que pediu mais respeito e que retirasse as palavras ditas, respondeu:
Para vocês falta o sol da Itália. Vocês deveriam ir mais ao nosso país como turistas, porque aqui são turistas da democracia!

A cena, que também entrou em “O Crocodilo”, está no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=9HtmfCyVMbU

2) Sobre o conflito pela condição de dono de uma empresa de comunicações e o cargo de primeiro-ministro: “Se eu, cuidando dos interesses de todos, também me preocupar com os meus, não se pode falar em conflito de interesses”

3) As auto-definições, as melhores:
- Eu sou Jesus Cristo da política. Sou uma vítima paciente, agüento a todos, me sacrifico por todos.

- O melhor líder político da Europa e do mundo.

- Não tem ninguém no cenário mundial que possa competir comigo.

- O homem certo no emprego certo.

- Eu não vou para meu escritório pelo poder. Tenho casas por todo o mundo, navios estupendos, belos aviões, uma bela esposa, uma bela família. Eu vou lá para fazer um sacrifício.

- Na Itália sou visto como quase um alemão pelo meu “workaholism”. E eu sou de Milão, cidade onde as pessoas trabalham mais. Trabalho, trabalho, trabalho – sou quase um alemão”


E tem mais: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/3041288.stm

A propósito:

O cinema argentino se especializou em refletir os problemas sociais do país e consegue retratar muito bem os seus anos de ditadura. O cinema italiano investe no realismo e tem obtido bons resultados. Aqui, os principais filmes ainda são de humor ou para o público infantil. Salvam-se raras exceções, como “Doces Poderes” (1996), de Lúcia Murat, ou os filmes de Sérgio Bianchi (“Quanto Vale ou É por Quilo?” e “Cronicamente Inviável”, verdadeiros socos no estômago da classe média metida a elite). Mas tem muito brasileiro merecendo um filme como “O Crocodilo”. Quem poderia ser o primeiro?

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